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Estrada para a sustentabilidade

11/08/2022

Enquanto movimentam quase 65% das mercadorias que são comercializadas no Brasil, os caminhões transportam uma carga que em nada contribui para o desenvolvimento do país: gases de efeito estufa.


O uso predominante de diesel e a baixa qualidade das estradas impulsionam a emissão de poluentes que atrapalham o meio ambiente e colocam em risco a vida dos brasileiros (divulgação/R7)

Entre diversas opções de transporte de cargas disponíveis, o Brasil continua apostando na que mais contamina o meio ambiente e impacta negativamente na saúde das pessoas. Capaz de jogar na atmosfera 78,4 milhões de toneladas de gás carbônico equivalente (que engloba o dióxido de carbono e outros gases associados ao efeito estufa), a frota de caminhões do país polui mais a cada ano. E há um agravante: as estradas precárias, que potencializam a degradação da natureza, geram mais custos a empresas e trabalhadores e prolongam a exposição de motoristas a substâncias tóxicas emitidas pelos motores dos veículos.

De 2006 a 2020, os caminhões passaram de 3% para 5% do total de descargas líquidas de gases de efeito estufa no país, mostram dados do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (SEEG-OC). A quantidade de gás carbônico equivalente que esses veículos podem gerar corresponde ao desmatamento de 1.256 km² de vegetação nativa, área aproximada de toda a cidade do Rio de Janeiro, como demonstram os dados de 2020.


Foto: divulgação/R7

Cada vez mais se consome combustíveis fósseis nas estradas brasileiras, em especial o diesel. O volume cresce anualmente, e, desde 2006, avançou quase 42%, segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Isso foi impulsionado, em parte, pela condição das rodovias brasileiras. Apesar de ter mais de 1,7 milhão de quilômetros de estradas, a maioria das vias do país é classificada como regulares, ruins ou péssimas. Além disso, segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT), só 213,5 mil quilômetros de estradas brasileiras são asfaltadas, o que representa 12% de todas as rodovias.

A CNT estima que rodovias péssimas, por exemplo, aumentem em 91% os gastos de abastecimento e de reparo dos caminhões. Mas, além do prejuízo financeiro, há o impacto para o meio ambiente. Só em 2020, houve um consumo excedente de quase 956 milhões de litros de diesel devido às condições das rodovias, o que provocou uma emissão desnecessária de 2,5 milhões de toneladas de gás carbônico equivalente, segundo relatório da CNT.

"Se a rodovia está em má qualidade, toda hora o motorista tem que trocar de marcha, frear. Então, provavelmente, o veículo vai consumir mais diesel. Assim, vai emitir mais gases de efeito estufa e mais poluentes atmosféricos”

Professor do programa de engenharia de transportes do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Márcio D'Agosto

Considerando apenas a emissão de dióxido de carbono pelos caminhões, de 2006 a 2020, houve um crescimento de 32%, conforme cálculos do SEEG-OC. O que esses veículos produzem de CO2 atualmente já é quase duas vezes o que alguns países europeus poluem por ano, como Portugal, Suécia e Finlândia, segundo a Global Carbon Atlas, plataforma que compila dados de emissão de CO2 no mundo.

“Quando temos problemas no pavimento que comprometem a superfície de rodagem, como ondulações, trincas e buracos, o motorista precisa acelerar e frear mais vezes. Essa condição aumenta o consumo energético do veículo, além de aumentar o tempo de viagem e colocar o motorista em situações de risco. Em suma, temos maior consumo energético e maior dispêndio econômico, além da maior emissão de poluentes”, resume a gerente executiva ambiental da CNT, Erica Marcos.

 
O caminhoneiro Alessandro Damasceno: estradas deixam a desejar
Foto: Carlos Eduardo Sneakdan/R7

Alessandro Damasceno Gomes, 47 anos, rodou estradas de todo o Brasil nas últimas décadas transportando alimentos. Ao longo desse tempo, ele diz que teve de lutar contra o asfalto para fazer o seu trabalho. 

"Na buraqueira, corta pneu, danifica a suspensão. Com tudo isso, as estradas deixam a desejar. A gente gasta mais combustível. Sempre tem algum desgaste. Fora os outros riscos, principalmente para a gente, motorista. É cansativo. Em estrada ruim e esburacada, o trabalho é triplicado. A gente fica mais preocupado, tem que ter mais atenção", desabafa.

"É muita estrada ruim. E pela quantidade de impostos que a gente paga, além de pedágio e IPVA, era para termos melhores vias. Para a gente que leva e traz [mercadorias], poderíamos ter algo melhor. Seria bom até para o nosso trabalho", acrescenta.

 

Estradas de baixa qualidade

Ao longo dos 213,5 mil quilômetros de rodovias com asfalto no Brasil, circulam pelo menos 3,7 milhões de caminhões todos os anos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A proporção é de no mínimo 17 caminhões para cada quilômetro de estrada.

Cerca de 57% da frota de caminhões do país trafega nas rodovias com um peso bruto de, ao menos, 21 toneladas. Além disso, a maior parte dos veículos percorre ao menos 300 quilômetros diariamente. Cargas elevadas e por longas distâncias comprometem ainda mais a segurança do modal rodoviário.

Não à toa, entre 2001 e 2021, o governo federal gastou mais com manutenção de rodovias do que para ampliar a malha. De R$ 278,6 bilhões usados no período em ações de infraestrutura do transporte, R$ 141 bilhões, quase metade do valor total, foram apenas com reparos de estradas.

“A baixa qualidade das rodovias causa perdas significativas para transportadores, operadores logísticos e caminhoneiros autônomos, como a depreciação acelerada dos veículos, aumento no custo de manutenção, mais desperdício de combustível, eficiência energética mais baixa, problemas de poluição ambiental, ruídos e acidentes em excesso”

diretor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Transportes, Marcus Quintella.

A pesquisa CNT de rodovias de 2021 mostrou que, em pavimentos com boas condições, automóveis tendem a lançar na atmosfera, em média, 2,48% a menos de gases como monóxido de carbono, dióxido de carbono, dióxido de enxofre e óxidos de nitrogênio.

Como não é o caso das estradas do Brasil, a situação preocupa. Há dois anos, quando o país tinha 3,6 milhões de caminhões, cada um deles emitiu 21 toneladas de gás carbônico equivalente, de acordo com levantamentos do IBGE e do SEEG-OC. Esse valor é o mesmo que uma tonelada de metano, gás com potencial de aquecimento global 21 vezes maior do que o potencial do gás carbônico.

"Isso, além de ser um dado escabroso, é um alerta de que temos que avançar no controle, em todas as direções. Inclusive na eliminação do uso de combustíveis fósseis no transporte rodoviário", frisa o doutor em engenharia de transportes Luiz Miguel de Miranda, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).


Ítalo Márcio Silva, caminhoneiro: consumo maior de combustível em estradas ruins
Foto: Carlos Eduardo Sneakdan/R7

Ítalo Márcio Silva, 27 anos, tem pouco tempo como caminhoneiro, mas já sabe o quanto é difícil dirigir em estradas deterioradas. “Quando a gente pega asfalto ruim, o consumo é maior, tem que reduzir marcha toda hora, e isso não é bom. Tem muita estrada acabada. E ficam só remendando, sem fazer asfalto novo“, critica.




A saúde em jogo

O mundo registra anualmente 9 milhões de mortes relacionadas à poluição. Essa é a conclusão de um estudo realizado pouco antes da pandemia de Covid-19. A poluição do ar, gerada por fábricas e frotas antigas de carros e caminhões, veículos movidos a combustível fóssil, agravados pela precariedade de estradas, que prolongam o trajeto e causam danos aos motores de caminhões, ônibus e outros veículos automotores, é responsável pela propagação de doenças pulmonares e cardiovasculares.

A pesquisa, realizada pela Comissão Lancet de Poluição e Saúde, publicada na revista The Lancet Planetary Health, apresentou um panorama dos impactos do lançamento desenfreado de gases na atmosfera. O estudo analisa dois pontos envolvendo a contaminação do ar por gases poluentes e da água por materiais nocivos à saúde humana.

A contaminação da água também envolve dejetos de combustíveis e lubrificantes lançados no solo por problemas nos motores dos veículos. Os materiais vão parar no lençol freático e contaminam o meio ambiente, inclusive alterando a qualidade da água consumida pelos humanos e animais nas grandes cidades, em torno de vias estaduais e federais.

O dado de 9 milhões de óbitos por ano com essas causas foi levantado pela primeira vez em 2017 pela equipe da comissão. Dois anos depois, os pesquisadores refizeram a pesquisa e o resultado foi o mesmo, mostrando que o número de vidas perdidas por danos ambientais se mostrou inalterado.

Os resultados também revelam que governos e entes privados pouco fizeram no período de 24 meses para resolver o problema. A pesquisadora Nelzair Vianna, doutora em ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em poluição do ar e saúde humana, destaca que as mortes por poluição, assim como problemas de saúde relacionados a esse fenômeno, se concentram em área urbana, onde estão localizados os pontos de emissão de gases poluentes.

"As mortes por poluição se concentram nas grandes cidades. Há estudos apontando que mais de 90% da população das grandes cidades respiram ar de menor qualidade. Isso é uma grande preocupação, pois existe uma tendência de urbanização. Na América Latina, mais de 80% já vivem em grandes cidades, enquanto no mundo é pouco mais de 50%", detalha a pesquisadora.

“Esses trabalhadores estão expostos de forma contínua a essa poluição. Os motoristas, de uma forma geral, representam uma preocupação grande com a saúde. Existem estudos relacionando doenças hipertensivas em motoristas com a poluição do ar”
Nelzair Vianna, doutora em ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Nelzair Vianna frisa, também, que os materiais poluentes geram danos imediatos e a longo prazo para a saúde humana. "Quando o indivíduo inala essas partículas, elas já começam a gerar uma inflamação no epitélio respiratório e, por isso, vem o muco. Mas as partículas muito finas burlam o sistema respiratório e as defesas, chegam à corrente sanguínea e começam a migrar por todo o organismo. Elas provocam trombos e daí vem o infarto, o acidente vascular cerebral", alerta.

"O diesel é o combustível que mais contribui para a emissão de materiais particulados nas zonas urbanas. Essas partículas são os principais poluentes relacionados à saúde a curto e longo prazo. Elas provocam doenças relacionadas ao sistema cardiovascular e doenças crônicas", acrescenta. 



O perigo dos combustíveis fósseis

O uso de diesel por caminhões de carga pesada é um problema de grande impacto para a população. A substituição dele pelo gás natural liquefeito (GNL), que também é um combustível fóssil, pode reduzir em 10% a descarga de gases de efeito estufa por caminhões. Mas isso não é o suficiente para poupar muitas vidas.

Um estudo de 2019 da USP em parceria com pesquisadores do Imperial College de Londres, que analisou o impacto da poluição causada pelo fluxo de caminhões entre São Paulo e Campinas no sistema rodoviário Anhanguera-Bandeirantes, constatou que a troca de diesel por gás natural não reduziria de forma significativa a quantidade de mortes relacionadas à contaminação do ar.

Segundo o levantamento, de uma média de 188 mortes por doenças cardiovasculares ligadas à poluição nas cidades lindeiras, ou seja, que ficam em volta das rodovias, no máximo, 14 óbitos seriam evitados. Para as doenças respiratórias em idosos, o número foi ainda menor: menos de dez mortes seriam evitadas por ano.


BR-222, em Santa Inês (MA). Foto tirada em 7 de julho de 2021. Pesquisa CNT de Rodovias 2021. Veja aqui fotos produzidas durante a Pesquisa CNT de Rodovias 2021.

Pesquisa CNT de Rodovias 2021

O diagnóstico mostra que o desafio de transportar com sustentabilidade é ainda mais difícil. O investimento em biometano, veículos elétricos e outras fontes renováveis e limpas ganha importância frente aos resultados da pesquisa. Sobretudo porque cerca de 51 mil pessoas morrem por ano no Brasil por doenças relacionadas à poluição, de acordo com um estudo do WRI Brasil (instituto de pesquisa especializado em estratégias de desenvolvimento sustentável). Além disso, há o custo para os cofres públicos. Por ano, o Sistema Único de Saúde (SUS) gasta ao menos R$ 126,9 milhões com problemas relacionados à poluição do ar.

Enquanto o impacto é devastador, as ações do poder público para entender e combater o problema são ínfimas. Apenas 1,7% dos municípios brasileiros monitoram a qualidade do ar. Ou seja, dos 5.570 municípios no país, menos de 100 fazem este tipo de avaliação.

Saída sustentável

O caminho para a sustentabilidade passa, principalmente, pelo investimento em combustíveis renováveis. A descarbonização do transporte pesado é apontada por especialistas como a medida mais importante para reduzir os danos ao meio ambiente.

De 2016 até o ano passado, o Brasil até avançou nesse sentido. Segundo a EPE, houve uma alta de quase 17% no consumo de biodiesel e álcool etílico (anidro e hidratado) nas estradas. No mesmo período, o país aumentou a produção anual de biodiesel puro, que passou de 4,3 milhões de metros cúbicos para 6,8 milhões de metros cúbicos, constatou o Programa Ambiental do Transporte (Despoluir).

Mas a dependência do diesel ainda é enorme. Dados da CNT mostram que esse tipo de combustível é responsável por 45,2% de toda a energia usada no transporte rodoviário. Para Luiz Miguel de Miranda, da UFMT, cabe ao poder público assumir a responsabilidade de promover iniciativas para reduzir a participação do diesel e fazer a transição para outras fontes de energia.

"Acredito que o biodiesel seja a solução, uma vez que estamos adiantados na tecnologia de produção desse combustível. Mas precisamos de programas do governo para incentivar a produção de motores movidos a biodiesel. Não adianta as montadoras de caminhões abrirem fábricas. Tem de ser um programa integrado, gerenciado pelo governo e com acompanhamento sistemático do desenvolvimento dessa tecnologia", pontua.

Além do biodiesel, uma fonte alternativa de energia de tração para o transporte de cargas que se apresenta como solução é o biometano, combustível gasoso obtido a partir do processamento do biogás — que surge da decomposição de produtos ou resíduos orgânicos. Usá-lo no lugar do diesel pode fazer com que as emissões de gás carbônico reduzam 96%, segundo o RenovaBio.

De acordo com a Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), a produção atual de biometano está na faixa de 400 mil metros cúbicos por dia, mas a entidade estima que o Brasil tem potencial para alcançar os 120 milhões de metros cúbicos diariamente. Isso seria suficiente para suprir 70% da demanda nacional de diesel.

Para chegar lá, no entanto, há um longo caminho. Até 2027, o setor deve ampliar a produção diária de biometano para 2,3 milhões de metros cúbicos, o que ainda está longe da capacidade apresentada pela ABiogás. Mas para incentivar a fabricação do biocombustível, em março deste ano, o governo incluiu o biometano no Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura (Reidi). A medida vai beneficiar a construção de novas plantas para produção do combustível com a suspensão da cobrança de PIS/Cofins para aquisição de máquinas, materiais de construção, equipamentos e outros.

Na avaliação de Marcus Quintella, da FGV Transportes, a iniciativa do poder público é interessante, mas não o suficiente. Segundo ele, são necessários mais recursos para aperfeiçoar a infraestrutura do transporte. O problema é que, nos últimos anos, houve uma drástica redução dos investimentos públicos para essa finalidade. De R$ 15,6 milhões aplicados pelo governo federal em 2010, essa cifra caiu para R$ 9,1 milhões em 2021, 41% a menos. Hoje, de acordo com dados do Siga Brasil e IBGE, o investimento público federal em rodovias corresponde a apenas 0,09% do PIB.

"Para termos condições de alcançar um nível de infraestrutura de transporte compatível com países de primeiro mundo, precisaríamos usar de 3% a 5% do PIB ao ano durante 20 ou 25 anos, ininterruptamente", avalia.

"Teríamos que apostar muito em projetos para, quando tivermos condições de investimentos, já estarmos preparados para tal", completa Quintella.



Mais alternativas

Outra opção que entrou em discussão nos últimos anos foi os caminhões elétricos, apesar de ainda não serem utilizados com tanta abrangência no país. Dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) mostram que o Brasil tem apenas 422 caminhões desse tipo.

Professor do programa de Engenharia de Transportes do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Márcio D'Agosto avalia que, com o tempo, os veículos elétricos serão viáveis financeiramente.

Ele compara a questão com o uso de celulares: no início, os aparelhos eram caros e poucos conseguiam comprar, mas hoje o objeto é mais popularizado. "Isso vai acontecer com o veículo elétrico. Passaremos por uma fase de introdução progressiva e, mais na frente, será possível colocar o caminhão elétrico em um maior número de atividades", analisa.

Na opinião de D’Agosto, os caminhões elétricos são uma ótima alternativa para viagens de curta distância, de até 100 km por dia, e poderiam substituir veículos movidos a diesel que trafegam apenas na cidade. "A princípio, a eletrificação dos caminhões seria interessante em áreas urbanas, em atividades que o veículo para muito, como coleta de lixo ou entrega de mercadoria.”

 

Jovem pesquisadora do Instituto de Energia e Ambiente, Research Centre for Greenhouse Gas Innovation, da USP, Drielli Peyerl cita o hidrogênio como possível alternativa. Segundo ela, muitos países da Europa já usam o elemento como fonte de combustível. O problema para o Brasil, segundo ela, esbarra em infraestrutura, regulação, falta de incentivo político e tecnologia para obtenção do gás.

O processo de produção sustentável do hidrogênio, que é a eletrólise da água (decomposição de água em oxigênio e hidrogênio), é mais caro que a obtenção do elemento por meio de fontes fósseis. E, atualmente, a maior parte da produção de hidrogênio no Brasil é a partir de gás natural em refinarias. Esse método é mais agressivo ao meio ambiente devido à emissão de CO2.

"O Brasil é um dos países que mais tem potencial para a produção de hidrogênio, mas temos um entrave tecnológico muito grande, o que acaba favorecendo o uso do diesel. O hidrogênio como combustível, portanto, ainda é um grande ponto de interrogação", opina.

Drielli diz que outra alternativa é o diesel verde (produzido a partir de matéria-prima renovável), que já está em processo de expansão em alguns países. Contudo, mais uma vez, ela lembra que a obtenção dessa fonte de energia esbarra em questões de regulamentação. Para a doutora, o poder público precisa oferecer infraestrutura e políticas de incentivos à transição energética dentro do setor de transporte de cargas.

"O Brasil tem várias possibilidades de diversificação de combustíveis e tem que apostar nisso. A aceleração dessa transição é um dos principais pontos que tem que começar a ser trabalhado."

Futuro

Até 2035, a Anfavea estima que os biocombustíveis tenham uma participação de 30% no abastecimento de veículos pesados. A tendência é de que essas fontes de energia ganhem protagonismo no processo de descarbonização, desde que haja uma regulação favorável e investimentos para viabilizar a sua produção, segundo a associação.

Gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), David Tsai destaca que, em relação ao diesel, os combustíveis apresentados anteriormente são mais vantajosos, mas ele lembra que, para se planejar uma transição energética, é preciso pensar caso a caso.

Com os caminhões elétricos, por exemplo, ele diz que a tecnologia pode ser melhor aproveitada nas cidades, por questões de autonomia e infraestrutura para recarga. Além disso, como há emissão zero de gases poluentes, incluindo os poluentes locais (gases tóxicos que causam problemas na saúde humana), usá-los em áreas com grande densidade populacional seria uma boa estratégia para melhorar a qualidade do ar.

"O país precisa de uma estratégia nacional e um planejamento logístico que contemplem esses outros modos. Ambientalmente, é bastante interessante diversificar essa matriz energética. O desafio é econômico, esbarra na questão do custo. Mas será bem-vindo o investimento nessas tecnologias", sublinha.

“Temos um problema sério. Acho que a transição do setor de transporte é um dos principais gargalos que precisa ser resolvido. É preciso rever essa política de incentivo a rodovias”

Jovem pesquisadora do Instituto de Energia e Ambiente, Research Centre for Greenhouse Gas Innovation, da USP, Drielli Peyerl.

Outros modais

Em um país de dimensões continentais, depender majoritariamente de uma única forma de transporte é um problema. Especialistas apontam para a necessidade de investir e utilizar outros modais de transporte, como o aquaviário interior (feito nas hidrovias), ferrovias e cabotagem, que é a navegação pela costa do país, diferente da navegação de longos cursos.

As ferrovias são consideradas como a solução mais vantajosa. Segundo a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), um vagão comporta o mesmo volume de quase quatro caminhões. Um trem composto de 100 vagões, portanto, poderia tirar 357 caminhões das estradas. Além disso, a poluição provocada pelas locomotivas é 24 vezes menor, de acordo com números do SEEG-OC.

"Precisamos partir para a implantação e a expansão de um meio mais competitivo econômica, técnica e ambientalmente, que naturalmente é o transporte ferroviário. É inaceitável para quem tem um território continental movimentar mais de 60% da sua carga apenas pelo modal rodoviário, que reconhecidamente é o que mais impacta o meio ambiente e o mais caro", analisa Luiz Miguel de Miranda, da UFMT.

O problema é a extensão da malha ferroviária, que tem aproximadamente 31 mil km, de acordo com a ANTF. A participação das locomotivas na movimentação de cargas é de apenas 15%, segundo a CNT. Miranda diz que o ideal seria, pelo menos, de 45%.

"Estamos muito mal na fotografia. Temos que explorar melhor o potencial de cada modal. Para curtas distâncias, sem dúvidas tem de ser o caminhão. Mas, em médios e longos trajetos, podemos priorizar a ferrovia e a hidrovia. Quanto mais transporte nós tivermos na ferrovia, mais demanda vamos ter para os caminhões na curta distância. O Brasil produz cada vez mais carga. Então, tem espaço para todo mundo", constata.

David Tsai, do IEMA, acrescenta que investir em cabotagem também seria uma excelente estratégia, tendo em vista o tamanho da costa brasileira e a concentração de pessoas ao longo do litoral. "Ambientalmente, é bastante interessante diversificar a matriz energética. O desafio é econômico, de tornar essas tecnologias comercializáveis em escala ampla e competitivas em relação ao diesel", argumenta.

O Plano Setorial de Transporte e de Mobilidade Urbana para Mitigação e Adaptação à Mudança do Clima elaborado em 2013 pelo então Ministério dos Transportes e das Cidades mostrou que o transporte rodoviário é, por exemplo, cinco vezes mais poluente que a navegação interior.

“Em termos ambientais, seria interessante investir em outros modais de transporte com o objetivo de reduzir emissões. O transporte rodoviário é o maior em emissões de poluentes e de carbono”
Gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), David Tsai

É importante, segundo especialistas, fazer uma organização territorial, para empregar o modal de transporte conforme a viabilidade de cada região. No Norte, por exemplo, com a quantidade de rios, a navegação interna é muito usada. Além disso, esse planejamento precisa envolver a preservação dos biomas locais. Tsai explica que construir rodovias em algumas regiões de floresta, por exemplo, pode facilitar o escoamento de madeira derrubada ilegalmente.

"Às vezes, em um lugar é interessante passar uma ferrovia. Em outro, é interessante passar uma rodovia. É preciso montar uma rede logística de forma inteligente e que cumpra esses objetivos ambientais, sociais e econômicos", diz.

Drielli Peyerl, da USP, enfatiza a necessidade de investimento em outros modais no país. "O Brasil está tão dependente do transporte rodoviário de carga que acaba não favorecendo o uso de outros modais. Por isso que essas decisões governamentais são tão importantes, como parar um pouco de investir tanto no modal rodoviário para carga e passar a investir no modal ferroviário", diz.

Renovação da frota

A renovação da frota de caminhões também é fundamental para que o setor de transporte de cargas do Brasil deixe de ser tão prejudicial econômica e ambientalmente. Hoje, a idade média da frota é de 15,2 anos, de acordo com a CNT. Mas a Secretaria Nacional de Trânsito estima que um a cada quatro caminhões que circulam pelas estradas do país tenham mais de 30 anos de fabricação.

Quanto mais antiga a tecnologia, pior. Segundo parâmetros do Programa de Controle de Emissões Veiculares (Proconve), que desde 1986 estabelece padrões legais de emissão de gases admissíveis para veículos leves e pesados, caminhões que seguem as primeiras regras formuladas pelo programa podem poluir 150 vezes mais do que os veículos que respeitam a norma mais atual do Proconve, que entrou em vigor neste ano.

"Veículos mais antigos têm tecnologia que emite mais poluentes. Veículos mais recentes têm uma tecnologia mais sofisticada, emitem menor índice de poluentes. É interessante observar que a idade média da frota também tem influência na poluição atmosférica", ressalta Erica Marcos, da CNT.

Na última semana, o Congresso Nacional aprovou uma medida provisória elaborada pelo governo federal com incentivos para a renovação da frota de caminhões.

Segundo a matéria, empresas transportadoras de cargas e profissionais autônomos poderão contratar linhas de crédito junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para adquirir novos veículos. Além disso, haverá o perdão a débitos não tributários de até R$ 5 mil vinculados ao caminhão que será retirado de circulação, desde que tenham vencido há pelo menos três anos.

Mas para que a circulação de caminhões mais sustentáveis traga resultados é preciso aperfeiçoar a malha rodoviária, diz Luiz Miguel de Miranda, da UFMT. "Os traçados rodoviários são muito antigos. A velocidade é importante para o transportador, pois reduz tempo de viagem. E reduzindo esse tempo, ele consegue fazer mais viagens. Mas de que adianta ter caminhões de alta potência em estradas com geometria inadequada? Precisamos melhorar as travessias em todo o território nacional", resume.



Metas ONU

O Brasil atualizou em abril deste ano, junto à Organização das Nações Unidas (ONU), as metas de redução de emissões de gases de efeito estufa, prevendo reduzir 50% dessas descargas até 2030 na comparação com o que foi jogado na atmosfera em 2005.

Nos próximos oito anos, de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, os países devem "reforçar a cooperação internacional para facilitar o acesso a pesquisa e tecnologias de energia limpa, incluindo energias renováveis, eficiência energética e tecnologias de combustíveis fósseis avançadas e mais limpas". Especialistas acreditam que o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer e que um dos principais entraves é o transporte rodoviário de carga movido a diesel.

Erica Marcos, da CNT, diz ser possível alcançar as metas, desde que haja mais medidas voltadas à expansão da bioenergia e um maior aporte capital por parte do poder público para conseguir uma transição energética. "Precisamos concatenar as políticas públicas com as monetárias de incentivo para ser possível fazer a transição energética no tempo desejado."

Marcus Quintella, da FGV, considera 2030 como um horizonte tangível para a substituição das frotas diesel por combustíveis menos poluentes. "A solução e a tendência para o Brasil é a substituição de sua frota ao longo dos anos. Para tanto, é necessário investir muito em nossas vias, na eletrificação das estradas e em novas frotas. Mais do que nunca, precisamos de investimentos significativos do PIB."

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Entrevista: Erica Marcos, gerente executiva ambiental da Confederação Nacional do Transporte (CNT)


​Erica Marcos, gerente executiva ambiental da Confederação Nacional do Transporte (CNT)
Foto: arquivo pessoal


Qual o impacto ambiental desse transporte rodoviário de cargas no país?

O transporte rodoviário tem uma grande participação na matriz logística nacional. Ele responde por praticamente 65% do carregamento de itens, de produtos de transporte de carga nacional e por 90% da mobilidade de passageiros. O principal combustível usado por esse segmento é o fóssil (diesel, gasolina e gás natural) e a combustão desse insumo gera gases de efeito estufa, que comprometem a qualidade do ar. O impacto ambiental do transporte rodoviário, majoritariamente, é na qualidade do ar. E com relação aos gases de efeito estufa, além da qualidade do ar, o que podemos contemplar como impacto ao meio ambiente é o aquecimento global. O excesso de CO2 compromete a perda de calor da Terra para o espaço. E isso faz com que ocorra o aquecimento global, que é uma das causas que levam às mudanças climáticas. Do ponto de vista ambiental, a poluição atmosférica compromete a qualidade do ar e a qualidade de vida. 

Além do prejuízo ambiental, existe algum prejuízo econômico no fato de as estradas no Brasil serem ruins?

Sim, existe. A infraestrutura rodoviária também compromete o desempenho do veículo. Quando temos problemas no pavimento que comprometem a superfície de rodagem, como ondulações, trincas e buracos, o motorista precisa acelerar e frear mais vezes. Essa condição aumenta o consumo energético do veículo, além de aumentar o tempo de viagem e colocar o motorista em situações de risco. Em suma, temos maior consumo energético e maior dispêndio econômico, além da maior emissão de poluentes.

As rodovias do país foram projetadas para suportar a carga transportada pelos caminhões?

Fizemos esse levantamento e vimos que apenas 12,4% das rodovias levantadas são pavimentadas. O cenário da infraestrutura rodoviária é ruim e precisamos trabalhar na adequação e na ampliação da pavimentação para fazer com que o transporte rodoviário fique mais eficiente e mais seguro.

O que falta para que, no Brasil, a frota de caminhões utilize fontes de energia alternativas ao diesel?

Essas fontes energéticas, principalmente as renováveis, são o caminho para fazer um transporte mais limpo. Mas essas fontes alternativas usam tecnologias veiculares diferentes das que usamos atualmente. Nesse sentido, um investimento de capital grande é importante para que possamos fazer essa transição energética. Um veículo elétrico é, em média, três vezes mais caro do que o convencional. O aporte inicial é grande. E, para isso, a participação do governo pode ajudar muito nessa transição.

Podemos ter políticas públicas que desestimulem o diesel e estimulem veículos mais limpos. Outro ponto que também podemos apostar é no desenho de um programa de renovação de frota. Na economia circular, quando você remove os veículos antigos eles podem ser reaproveitados para outros segmentos e setores, principalmente o industrial. Seria importante uma política que leve a um programa completo de renovação de frota, fomentando a entrada de tecnologias mais limpas e a retirada de veículos mais antigos por meio de créditos.

Ao falar nessas fontes alternativas, a senhora acredita que elas precisam ser pensadas acompanhando as especificidades de cada região do país?

Do ponto de vista técnico e mecânico, precisamos fazer um paralelo entre as condições e topografia do local, com a melhor aplicabilidade tecnológica veicular automotiva. Outro ponto é onde estão os maiores ganhos para a sociedade, tanto sob a ótica ambiental quanto sob a ótica social. Em regiões onde há maior densidade demográfica, certamente veículos de emissão zero de escapamento, como os elétricos, são mais favoráveis, porque têm um ganho ambiental e de qualidade do ar, o que aumenta a qualidade de vida da população. 

Em relação a outros modais, a senhora acha que é importante investir em mais formas de transporte de carga?

Certamente. A integração multimodal favorece a eficiência energética, a velocidade em que a carga chega no destino final e reduz os índices de acidentes. Também faz com que haja menos congestionamento nas rodovias. O ferroviário e o hidroviário, por exemplo, são modais mais limpos. Além disso, precisamos da integração intermodal. Para favorecer a expansão da malha ferroviária e aquaviária, precisamos de infraestrutura e apoio que possibilitem a intermodalidade.

As hidrovias na região Norte fazem o papel das rodovias. Temos que aproveitar o contexto já existente e fazer com que ele seja melhor utilizado. A hidrovia é menos poluente do que a rodovia e ali tem um contexto geográfico que favorece as hidrovias. Então, não tem porque não utilizá-lo.

O Brasil tem um compromisso para alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) até 2030. A senhora acredita que o país conseguirá alcançar as metas?

Acredito que com as medidas políticas que têm sido tomadas com a expansão da bioenergia, que são as fontes energéticas alternativas, combinadas com um maior aporte capital por parte de incentivos públicos para conseguir fazer essa transição, é possível, sim. Agora, realmente precisamos concatenar as políticas públicas com as monetárias de incentivo para ser possível fazer a transição energética no tempo desejado.

Pensando no transporte rodoviário de carga, qual o caminho para a sustentabilidade que o Brasil precisa seguir?

Precisamos de infraestrutura de qualidade, melhorar as rodovias do país, expandir o modal rodoviário onde ele é necessário, ampliar a multimodalidade para participação das matrizes do modal hidroviário e ferroviário e fazer a intermodalidade. Só assim vamos descarbonizar o transporte de forma contínua. O segundo ponto é a renovação da frota do modal rodoviário, um dos segmentos com maior consumo de combustível fóssil, fazendo uma transição energética com veículos mais limpos.

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Fonte: R7 estúdio

Reportagem
Augusto Fernandes, Renato Souza e Sarah Teófilo

Edição de vídeo
Carlos Eduardo Sneakdan

Artes
Luce Costa

Coordenação e edição
Fausto Carneiro, Kelly Almeida e Alexandre de Paula